O último semestre foi bem estranho. Aconteceu tudo. E ao mesmo tempo.
Eu tirei uma pinta, descobri que era câncer de pele e operei.
Minha irmã operada do estômago fez a plástica para retirar o excesso de pele dos braços e ficou com os dois praticamente imóveis por quase 2 meses.
Eu passei uma produção no esquema 13 horas diárias de trabalho.
Minha irmã ficou desempregada.
Meu marido teve problemas com impostos atrasados.
Enquanto isso, minha mãe, que sofria de dores intestinais terríveis, descobriu uma diverticulite mal curada que causou um estreitamento no intestino. Teria que operar. Seria uma cirurgia bastante simples, com previsão de alta em 10 dias.
Arrombaram o carro da minha irmã, que eu estava usando enquanto minha mãe estava internada, entortando a porta e arrebentando o vidro.
Minha ex-cunhada resolveu sair da casa vizinha à casa da minha mãe e eu fiquei 3 meses na expectativa de me mudar pra lá. Eu consegui mudar no dia 26 de junho, esperando o dia da minha mãe sair do hospital pra eu poder tomar conta dela melhor.
Eu sei que outras coisas desse mesmo naipe aconteceram, mas já não consigo me lembrar o que foram.
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No dia 30 de maio, minha mãe foi internada para realizar a cirurgia de retirada de um pedaço pequeno do intestino. A cirurgia seria no dia 31.
Ela fez todo o sofrido preparo e subiu para a cirurgia às 7h30 do dia 31.
Às 9h soubemos que ela não poderia ser operada porque o anestesista não havia conseguido entubá-la. Parece que não é uma coisa tão incomum. Talvez tenha sido incompetência, sei lá.
Quando ela voltou pro quarto estava toda urinada, vomitada, descabelada, sem força e sem ter mais o que vomitar. Mas, mesmo assim, continuava tentando vomitar. Foi a da cena mais chocantes que eu vi na vida. Pensei que minha mãe estava morrendo ali, naquela hora, na porta do quarto, esperando a cama estar arrumada para que ela pudesse passar da maca pra cama.
Ela passou muito mal o resto do dia. Fizeram o preparo da cirurgia novamente e ela subiu para a cirurgia no dia seguinte, quando um endoscopista estava a sua espera para entubá-la.
A cirurgia aconteceu.
Ficamos sem notícias dela das 7h30 até às 18h. Já estávamos mais do que desesperados, quando o médico saiu da cirurgia e veio falar com a gente.
O caso tinha sido bem mais sério do que o esperado. Ela tinha aderência em tudo que era lugar. Os médicos acabaram tendo que tirar um pedaço muito maior do intestino, o útero, os ovários, um pedaço do ureter esquerdo e fazer uma raspagem na parede do abdomêm, onde os órgãos estavam aderidos também.
O ureter foi religado à bexiga. O intestino foi desviado por uma colostomia. Um dreno foi colocado no corte. Uma sonda foi ligada na bexiga. Minha mãe foi para a UTI (como já era previsto) com vários penduricalhos. Mas estava bem.
A previsão eram 3 dias de UTI. Ela ficou 1 dia e meio. Voltou para o quarto e foi melhorando um pouquinho por dia. Não tinha previsão nenhuma de alta, mas ela estava melhorando.
Ela sofria muito de dores nas costas. Sempre teve problema de coluna e a impossibilidade de ficar se mexendo na cama ou caminhar prejudicava ainda mais a coluna.
Mais ou menos uma semana depois da cirurgia, ela estava bem mais animadinha, de mais bom humor, comendo melhor, ensaiando uns passinhos, os exames estavam todos bons. O resultado da biópsia saiu e foi tranquilizador. Não deu nada malígno. Minha mãe teve diverticulite e endometriose. Quem diria…
Encontramos uma acupunturista que se dispôs a atendê-la lá no hospital para aliviar as dores e ajudar o intestino. Acabou ajudando um pouco.
Tudo indicava que ela teria alta logo.
Então notamos que o corte da cirurgia estava vazando. Mas não vazava sangue, vazava urina. Muita. O médico disse que era comum em cirurgia de reconstrução da bexiga ficar uma fístula (buraquinho). Essa fístula cicatrizaria em breve.
Ela ficou firme, cada vez melhor. Passeando um pouco pelo corredor. Esperando os doutores palhaços e o coral de velhinhos que passavam toda quarta-feira. Ela conseguia ir da cama até a porta para assistir o coral. E, assim que eu chegava para vê-la às quartas-feiras, ela dizia:
— Os velhinhos vieram cantar hoje e eu fui lá na porta assistir. Muito bonitinhos.
Ela gostava. Sempre gostou de música.
Diminuíram o líquido da dieta dela pra ajudar na cicatrização da bexiga. Isso fez com que as fezes ressecassem e não saíssem mais. Ela passou a se sentir pior (empachada, como ela dizia). Quatro lavagens intestinais foram feitas em dez dias, sendo que a primeira foi realizada enquanto os enfermeiros trocavam o acesso da veia central para a mão e tiravam sangue pro exame. Tudo ao mesmo tempo. Foi o dia que eu a vi mais assustada.
Não resolveu. O intestino funcionava, mas ela estava “entupida”. A bexiga também não parava de drenar pelo corte, o que significava que a fístula continuava lá.
As dores foram piorando. O humor dela foi sumindo. O cansaço foi tomando conta. Os passeios acabaram. Os palhaços e o coral não tinham mais o poder de animá-la. Nem falar ela queria mais. E não falava.
Depois de um mês da cirurgia, os médicos resolveram operar novamente para fechar a fístula e ver o que estava acontecendo com o intestino.
Ela subiu para a cirurgia às 16h30. Soubemos dela às 21h.
O ureter que tinha sido religado na outra cirurgia estava necrosado. Cortaram o pedaço e fecharam o ureter. Ela estava com um dos rins desligado. O intestino foi “ordenhado” e estava funcionando.
Ela foi pra UTI. No dia seguinte soubemos que ela estava com uma infecção generalizada. Os rins não estavam funcionando. A situação estava bastante séria.
A situação permaneceu séria, mesmo com os rins voltando a funcionar. A infecção não cedia, nem com o antibiótico mais forte.
Os dias foram ficando cada vez mais desesperadores, sem notícias dela a não ser por uma hora no período da manhã e uma hora no da tarde, que eram os horários de visita da UTI.
No dia 5, segunda-feira, ligaram pra minha irmã pedindo pra um familiar ir ao hospital porque a situação tinha piorado. Minha irmã ligou pros outros três e fomos todos pro hospital, junto com meu pai. Mas antes de chegar lá eu já sabia. Chegando ao hospital, duas pessoas deveriam subir à UTI. Eu não tive forças.
Minha mãe morreu às 8h30 do dia 5 de julho de 2010. Aos 65 anos. Até agora eu não sei porque…
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Resolvi escrever tudo isso porque precisava pôr pra fora e porque tenho medo de esquecer. Eu já esqueci alguns detalhes. Não lembro, por exemplo a data da segunda cirurgia. Não sei se foi dia 30, 31 ou 1. Não quero esquecer mais nada. Não posso esquecer nem um minutinho da minha mãe.
Minha mãe foi a pessoa mais forte, íntegra, generosa e justa que eu já conheci. Ela casou com o melhor pai, teve quatro filhos que a amam profundamente, conquistou muitas pessoas, recebeu muitos filhos postiços que também a amam muito. Minha mãe não bajulava ninguém. Era autêntica. Acho que por isso mesmo ela conquistou tanta gente.
Eu não sei se um dia vai parar de doer. Eu não sei se um dia eu vou parar de me perguntar o que diabos aconteceu. Eu não sei se um dia eu vou parar de chorar.
Também não sei se a vida continua mesmo depois da morte, como dizem alguns. Mas, se existe, eu sei que minha mãe tá dançando “O cume” pros anjos lá no céu como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Te amo, mãe. Fica direitinha.
Bobagens dos outros